fevereiro 25, 2007

silêncios de amizade

Sei que sabes que não há problemas de comunicação entre amigos, há silêncios de amizade. É por isso que os anos passam e nós continuamos, é por isso que te quero como família.

Foi por isso que não te liguei, nem ontem, nem na sexta, nem na semana passada. Porque nos últimos dias apetecia-me estar comigo mesmo, perder-me na minha casa, esparramar-me no cadeirão e devorar um livro de enfiada… precisava de tempo para mim.

A nossa amizade está sempre lá, mas não precisa de picar o ponto.

Eu sei reconhecer as tuas urgências e tu as minhas. E ambos sabemos quando falar e quando calar.

É por isso que te ligo agora e tu sabes que o meu retiro já acabou. É por isso que hoje vamos aproveitar os fugidios raios de sol e pôr a conversa em dia.

fevereiro 24, 2007

Jantar

Incrível como cozinhar lhe alimentava a alma. Deixava a sua criatividade misturar-se com a gula e respirava os aromas sofregamente. Cozinhar era como uma dança quente e sensual, meio tango, meio rumba… cujo compasso era marcado pela colecção de especiarias desordenadamente espalhadas na bancada da sua cozinha laranja.

Levou a colher à boca, tapou o tacho. “Perfeito” disse para si mesmo.

Abriu a garrafa de vinho e tirou o avental. No mesmo milésimo de segundo tocou a campainha. Sem dificuldade ouviu as gargalhadas. Era esperar mais uns minutos e o grupo estaria completo e “apurado”… e a noite, essa seria mais uma das pequenas coisas da vida que lhe alimentavam a alma.

Galinha azul

Deixei-te um recado. Está na porta do frigorífico, preso pela galinha azul de olhos esbugalhados que comprámos no verão passado naquela feira de artesanato que descobrimos por acaso…

Não consigo deixar de sorrir, quando olho para ela com o seu ar estupefacto.

Às vezes, penso que poderíamos fazer estas caretas enquanto discutimos… e não diríamos metade das coisas que dizemos. Não é que a gente discuta muito… nem que eu ache que quem ama não deve discutir, ou não pode…

Conheces-me bem e sabes que nunca acreditei naquela treta que o casal é uma coisa una, como um só pensamento. Para mim um mais um, dá dois e qualquer coisa, e essa é a beleza das relações…

O que me chateia é termos discutido por uma merda qualquer sem significado e adormecermos chateados.

Foi por isso que deixei o recado na porta do frigorífico à guarda da galinha azul. Sei que quando acordares, vais beber o teu copo de leite matinal e será impossível não passares por lá.

Sei também que vais sorrir duas vezes, uma pela galinha dos olhos esbugalhados e a outra pelo meu recado: “Posso nem sempre concordar contigo, mas nunca deixo de te amar”

fevereiro 22, 2007

o dia

Era dia de solidão. De janelas fechadas, trancas à porta. Era dia de silêncio.

Nada poderia ser dito, nada valeria murmurar, nada mudaria o que quer que seja... O mundo tornava-se objecto pesado, que os braços não suportavam, nem pretendiam suportar.

A densidade da vida consumia-lhe o ar, e o fôlego de reagir era inútil, entorpecido, quase extinto.

Tudo era de mais. Tudo esmagava. E aquele, era um desses dias em que a vontade de viver se aninha num canto da alma e reconhecendo o precipício, se mantém estática e congelada à espera do amanhã.

Não havia choros, nem gritos, nem telefonemas. Nem cartas. Não havia colo, nem abraços, nem ladainhas. Não havia palavras.

O desespero não tinha lugar, apenas a impotência.

Este era o dia em que os outros ficavam do outro lado e apenas reinava o vazio.

Era o dia em que se esperava o amanhã, não por ser diferente de ontem, mas por trazer de novo a força.

fevereiro 21, 2007

contornos

Vou deixar-te. Reduzir-te aos teus contornos, ostracizar-te do meu mundo, excomungar-te dos meus pensamentos.

O teu limite começará lá fora. Ficarás longe de mim.

Serás apenas pessoa, e não amor.

fevereiro 13, 2007

Dia dos Namorados

Véspera de dia dos namorados. Cafézinho da esquina. Destino familiar e albergue de amenas cavaqueiras.

7:49 da tarde. Mesa do canto, mais recolhida que as restantes, não fosse a máquina de cigarros mesmo ao lado. Encontro sistemático de quem se escolheu como família e compartilha gargalhadas na mesma proporção que a argamassa de tristezas, desilusões e “porquê eu?”

Conversa, puxa palavra, palavra puxa conversa. Relatório despreocupado de preocupações banais, episódios lúdicos do dia.

Por fim a inevitável pergunta armadilhada entre amigas, “Então o que vais fazer amanhã?” resposta do outro lado com tom dissimulado “vou comprar um vibrador…”

Explosão de risos. Gargalhas compulsivas e a certeza de não estarem sós.

fevereiro 12, 2007

O grito

Era o medo que se enraizava, ganhando centímetros à alma que já não reconhecia este estado de espírito. Era a angústia que lhe tomava de repente a consciência desprendida dos pensamentos banais.

Olhou para a porta, mas a campaínha continuou impávida e serena.

O email sem nada de novo, o telemóvel sem sinal de vida… Do outro lado tudo era silêncio. Daquele lado tudo era impotência. Quis gritar, mas as paredes do seu apartamento revelaram-lhe a ausência de privacidade da construção moderna.

Gritou em seco, agora com duas dores: a antiga e a de não poder ouvir o seu grito.

fevereiro 11, 2007

Inspiração

As palavras faltavam-lhe. Sentiu-se pequeno. Desfasado. Distante. Tentou de novo. A raiva apoderou-se, a respiração acelerou, para pouco depois o desalento tomar conta da situação.

Ter trocado a caneta pelo computador, já nem lhe permitia rasgar o papel e atirá-lo para o pequeno caixote de lixo vermelho que tinha à direita da secretária.

Novo misto de raiva e impotência. Saltou da cadeira. Na cozinha abriu o frigorífico, para não lhe apetecer nada.

Nada no estômago, nada de palavras, nada de jeito na televisão.

Também não lhe apetecia sair.

Percorreu toda a casa com aquela inquisição/hesitação de quem quer algo, mas não sabe bem o quê… talvez por isso se tenha lembrado daquele anúncio dos bombons.
Aqueles que tinha guardados na despensa, aqueles que a tia-avó lhe tinha oferecido no Natal juntamente com o tradicional par de meias pretas.

À sétima vez que passou pelo escritório culpou o branco das paredes pela falta de inspiração e fez um apontamento mental “amanhã, amanhã vou pintar a porcaria da parede de laranja… não, vermelho para combinar com o caixote”.

Sentou-se novamente na cadeira e afagou a secretária. Mais uma tentativa. Escreveu. Apagou. Escreveu, apagou… fechou os olhos por cinco minutos e trinta e três segundos.

Desligou o computador. No documento Word apenas ficaram duas palavras “onde estás?”.

Mil e uma coisas

Mil e uma coisas. Tinha feito mil e uma coisas naquele dia e o cansaço fazia-se sentir com particular pertinência no seu pé direito. Os ombros e as costas também tinham direito a lamentações, mas não a alma.

Tinha sido um dia bom… recheado de pequeninas alegrias, que de tão pequenas e de tantas lhe inspiravam agora uma dança interior libertadora.

Retirou os sapatos, despiu a roupa.

Transbordava sorrisos por dentro e por fora, e os sorrisos rasgavam-se um pouco mais, enquanto memorizava para registo pessoal o dia que agora terminava e dele, 10 segundos precisos de quase, quase felicidade.

Deitou-se acompanhada de um livro e adormeceu com uma sensação de preenchimento.

fevereiro 10, 2007

a fotografia

Viu mais uma vez a fotografia. Depois saíu do sofá e deixou-a caída em cima da mesa. Pegou nas coisas, abriu a porta.
Ainda no elevador recordou outra vez, até que aquele pequeno barulho da chegada lhe interrompeu a introspectiva.
Saiu, ultrapassando a entrada do prédio rapidamente até ao exterior.
O sol compareceu ao encontro e tudo ficou leve.
"Óptimo!" pensou "tenho os ténnis calçados". Percorreu as ruas, trepou para um eléctrico e sentiu a cidade.
No outro lado alguém olhava... sorriu de volta. Depois desviou o olhar para a janela. Ali estava a cidade novamente oferecendo-lhe libertação.
Ficou assim... perdeu a noção dos minutos e das horas, e gozou o facto dos pensamentos serem intercaladamente rápidos e lentos e por isso não ter real noção dos mesmos.
Era tarde. Novamente no elevador apenas pensava no que queria jantar.
Abriu a porta. Passou pela mesa. Agarrou a foto, mas não olhou (não porque não conseguisse; simplesmente porque não sentiu necessidade). Dirigiu-se ao armário. Fechou a gaveta. E foi fazer o jantar.

fevereiro 09, 2007

adeus

Ficou por ali, à beira-mar, respirando pausadamente e apreciando uma espécie de silêncio que se pronunciava no bater das ondas. Reconheceu cada breve segundo de paz. E respirou cada lufada de ar como se tratasse de uma oração redentora do peso que há cinco dias lhe tinha tomado o corpo e a alma de assalto.

Até que a verdade rasgou o mar de novo e lhe sussurrou em tom crescente o pensamento agora tão familiar: “Já não estás aqui”

“Já não estás aqui” gritou para o mar, “já não estás aqui” balbuciou depois, enquanto esfregava os pés na areia num ritmo descompassado e incerto.

Em tom de raiva e de lamento gritou de novo para o mar que antes apreciava a dois “Já não estás aqui… e eu não disse adeus”
Acabou por adormecer pouco tempo de depois… ao som das ondas que lhe embalava a dor.

silêncio

Senta-te ao pé de mim mas não digas nada. Não quebres o silêncio que me adormece o cansaço e deixa-me recuperar terreno naquilo que ainda sou…

Preciso de alcançar-me de novo, de ganhar terreno à vida… ultrapassar a rotina, viajar para lá destas paredes… Preciso de confinar esta pequenina raiva que se enroscou no pescoço, deslizou até à caixa torácica e insistentemente me prende os músculos, esmaga a respiração.

Mas fica, não vás… fazes parte desta oração de silêncio, estás do lado de cá deste muro invisível, da camada isoladora que estabeleci… simplesmente não deixes o som invadir-nos.